Criado como forma de catarse, sem o objetivo de agradar nem ofender, apenas colocar pensamentos de uma mente "em cacos" para, com isso, encontrar aquele caco mais brilhante, digno do olhar dos deuses!

domingo, 28 de junho de 2009

Serenata sem estrelas


Só como um cantor
Vejo a noite cair
Debaixo dos meus pés
Como um edifício cai
E eu quisera ter
A música do mar
As frutas do pomar
Antes da chuva vir

No out-door luminoso
A vida a mentir
Nenhuma estrela mais perto dos olhos
Ninguém
Ecos de um rádio antigo
Eu penso ouvir
Um cigarro um segredo e nada além

Quanto mais ando mais perco
Teu rastro armadilha na estrada sem fim
Choro em silêncio a dor
Sofro mas nem a lua tem pena de mim
Sei mais caminhos que os meus sapatos
Na escuridão esperava por ti
Mas ontem rasguei teu retrato
Te matei e dormi

Zeca Baleiro

domingo, 21 de junho de 2009

Cacos


Mais uma vez ela recorria ao maço de cigarros. Fora outra noite sem dormir, outro almoço sem comida, outro dia sem sentido na sua vida. O cansaço tomava conta de toda ela. Era difícil pensar, era difícil respirar, era difícil demais. E o pior de tudo era se sentir tão miserável, tão ridícula naquele papel triste de vítima. Como aquilo a irritava...

Ela estava sozinha em seu apartamento e, apesar do dia ensolarado, ela continuava com seu pijama de flanelas e aquele cobertor velho. Não havia se penteado ou escovado os dentes. Não sabia que horas eram e só conseguia ficar ali, sentada no chão frio fumando, pensando, chorando.

O cheiro dele estava em toda parte. Sua voz ecoava pela casa desarrumada e se fazia presente em cada pedaço da cabeça dela. Ela deixara tudo exatamente como estava quando ele partiu. Havia poeira nos móveis e o sofá continuava fora do lugar habitual. Os cacos da briga a encaravam como fantasmas, ela não podia se mover, ela não conseguia parar de rever aquele show de horrores.

O cigarro acabou, fez como no dia anterior, ligou para o porteiro que lhe trouxe um maço novo em questão de minutos. Abriu a porta para ele, encarou sua piedade e cuspiu-a dali. Não precisava daquilo, era humilhação demais, era triste demais. Fechou a porta. Voltou pro mesmo lugar e recomeçou a encarar o vazio. Seu problema? O vazio estava cheio de toda merda que ela disse. Que erro... Que erro!

Gritaram seu nome, era ele, era ele, ela tinha certeza. Levantou-se, correu pelo apartamento, ele não estava lá, ele se fora. As lágrimas voltaram sem que ela percebesse, já havia se habituada a elas. Sentou-se de novo e sentiu o coração parar. “Essa foi nossa última... A última!” Ele se fora. Pra sempre.

A realidade pesava nos seus ombros. Como aceitar que aqueles anos se foram nos minutos da noite anterior... Seria a noite anterior? Ela não fazia idéia! De que valia o tempo? De que valia qualquer coisa? Ela era nada. Sem ele, ela era nada. Alguma coisa lhe dizia que ele voltaria, ela deixou tudo do mesmo jeito. Ele voltaria e a encontraria ali onde a deixara.

“Se você sair é melhor não voltar! Eu cansei de te esperar, cansei de me deitar no chão sempre que você vai embora. É melhor NÃO VOLTAR!” Por que ela havia falado aquilo? Por que ela não deixou que ele voltasse? Ela não era tão forte quanto queria parecer, ela precisava dele, precisava. Ela o amava.

Um ruído na porta fez seu coração voltar a bater. Era ele, lindo, na porta. Era ele, era... Era sua mãe implorando que ela saísse de casa. “Não, ele vai voltar. Eu estou esperando meu amor voltar, ele vem...” A mãe chorava, a filha pirava e fumava, fumava como o demônio e delirava como uma louca. A mãe tentou aproximar-se, parou no meio do caminho, ela estava gritando. Ela estava chorando. Ela estava sentindo demais. A mãe chorou baixinho e saiu. Ela estava sentindo demais e a mãe não podia ajudar.

Quando voltou pro seu lugar ela pisou num caco de vidro. Era um caco lindo. Era um caco brilhante. Era um dos muitos cacos dela que se espalhara pelo chão. Ela encarou o caco. Ela pegou o caco. Ela se matou com o caco mais brilhante. Ela se matou com o caco do que era. Ela se matou com o caco dos deuses. Ela morreu pelo caco mais brilhante, o maior, o mais afiado e perigoso de todos os cacos. Ela sangrou por aquele caco de vidro. Ela não foi mais encontrada. Sua alma se fora, se fora com os deuses que cobiçavam seu caco brilhante, perigos e afiado.

Isadora Perdigão

sábado, 13 de junho de 2009

Lembro

Lembro-me de um tempo em que o tempo não existia, era algo cujo sentido de perdia em meio às conversas de minha mãe. Sem o tempo as lembranças se formavam sem saber e por isso, hoje, são sinceras e completas em um presente confuso, cheio e vazio demais de tempo.

Lembro-me também de um tempo, não tão distante, em que quis acreditar na benevolência deste que se torna quase um inimigo: escrevi sobre o tempo. Naquele dia as palavras eram doces, cheias de certeza e sonhos e esperança nesse médico invisível apregoado por vovó. Ah, o tempo!

Lembro-me de mim tão inocente, tão sabida dessa vida que nem sei. Como pude me iludir e como deixei passar? Era bom me sentir segura dentro de uma mentira não declarada de quem sou. Na verdade, ainda quando achava que encontraria respostas, era melhor, era um tempo bom.

Lembro-me, agora, que o tempo importa e ele existe, tão pesado existe que cresci- talvez rápido demais- e já não posso ser minha lembrança. O que perdi pro tempo só ele vai me contar- se contar- quando eu puder e souber lidar com a verdade que isso traz. O que ganhei do tempo está intrínseco em cada minuto, está em cada palavra em todas as outras e em cada piscar de olhos, luzes e tempo. Quando finalmente me esquecer do tempo talvez perceba a irrelevância das minhas rugas e encontre, nos fios brancos dos meus cabelos, o que busco hoje: EU.

Isadora Pedigão

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O ovo e a galinha (recorte)



A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal.

Clarisse Lispector