Mais uma vez ela recorria ao maço de cigarros. Fora outra noite sem dormir, outro almoço sem comida, outro dia sem sentido na sua vida. O cansaço tomava conta de toda ela. Era difícil pensar, era difícil respirar, era difícil demais. E o pior de tudo era se sentir tão miserável, tão ridícula naquele papel triste de vítima. Como aquilo a irritava...
Ela estava sozinha em seu apartamento e, apesar do dia ensolarado, ela continuava com seu pijama de flanelas e aquele cobertor velho. Não havia se penteado ou escovado os dentes. Não sabia que horas eram e só conseguia ficar ali, sentada no chão frio fumando, pensando, chorando.
O cheiro dele estava em toda parte. Sua voz ecoava pela casa desarrumada e se fazia presente em cada pedaço da cabeça dela. Ela deixara tudo exatamente como estava quando ele partiu. Havia poeira nos móveis e o sofá continuava fora do lugar habitual. Os cacos da briga a encaravam como fantasmas, ela não podia se mover, ela não conseguia parar de rever aquele show de horrores.
O cigarro acabou, fez como no dia anterior, ligou para o porteiro que lhe trouxe um maço novo em questão de minutos. Abriu a porta para ele, encarou sua piedade e cuspiu-a dali. Não precisava daquilo, era humilhação demais, era triste demais. Fechou a porta. Voltou pro mesmo lugar e recomeçou a encarar o vazio. Seu problema? O vazio estava cheio de toda merda que ela disse. Que erro... Que erro!
Gritaram seu nome, era ele, era ele, ela tinha certeza. Levantou-se, correu pelo apartamento, ele não estava lá, ele se fora. As lágrimas voltaram sem que ela percebesse, já havia se habituada a elas. Sentou-se de novo e sentiu o coração parar. “Essa foi nossa última... A última!” Ele se fora. Pra sempre.
A realidade pesava nos seus ombros. Como aceitar que aqueles anos se foram nos minutos da noite anterior... Seria a noite anterior? Ela não fazia idéia! De que valia o tempo? De que valia qualquer coisa? Ela era nada. Sem ele, ela era nada. Alguma coisa lhe dizia que ele voltaria, ela deixou tudo do mesmo jeito. Ele voltaria e a encontraria ali onde a deixara.
“Se você sair é melhor não voltar! Eu cansei de te esperar, cansei de me deitar no chão sempre que você vai embora. É melhor NÃO VOLTAR!” Por que ela havia falado aquilo? Por que ela não deixou que ele voltasse? Ela não era tão forte quanto queria parecer, ela precisava dele, precisava. Ela o amava.
Um ruído na porta fez seu coração voltar a bater. Era ele, lindo, na porta. Era ele, era... Era sua mãe implorando que ela saísse de casa. “Não, ele vai voltar. Eu estou esperando meu amor voltar, ele vem...” A mãe chorava, a filha pirava e fumava, fumava como o demônio e delirava como uma louca. A mãe tentou aproximar-se, parou no meio do caminho, ela estava gritando. Ela estava chorando. Ela estava sentindo demais. A mãe chorou baixinho e saiu. Ela estava sentindo demais e a mãe não podia ajudar.
Quando voltou pro seu lugar ela pisou num caco de vidro. Era um caco lindo. Era um caco brilhante. Era um dos muitos cacos dela que se espalhara pelo chão. Ela encarou o caco. Ela pegou o caco. Ela se matou com o caco mais brilhante. Ela se matou com o caco do que era. Ela se matou com o caco dos deuses. Ela morreu pelo caco mais brilhante, o maior, o mais afiado e perigoso de todos os cacos. Ela sangrou por aquele caco de vidro. Ela não foi mais encontrada. Sua alma se fora, se fora com os deuses que cobiçavam seu caco brilhante, perigos e afiado.
Isadora Perdigão