E então ela acordou e sentiu um gosto amargo na boca, abriu os olhos e viu um mundo sem cores, mas claro, claro demais. Ouviu gemidos e choros, mas o que mais a assombrava eram os risos histéricos que chegavam de algum ponto central daquele lugar. Quando tentou se levantar, não o fez, não conseguia achar um chão para pisar. Foi aí que percebeu estar em um mundo novo, viu que teria que pintá-lo, orquestrá-lo, construí-lo!
Perguntou-se o que faria primeiro. Resolveu começar pelas vozes, entendê-las lhe parecia essencial. Ouviu o choro. Ele era baixo e tímido demais, aproximou-se, perguntou-lhe porque sofria. “Sofro por não ser ouvido, por ser calado sempre que tento sair. Sofro por existir e não ser notado”. Havia algo de conhecido naquele chorar, mas ele estava tão baixo! Decidiu ir até os gemidos e percebeu que eram de dor. Quis saber se podia ajudar, recebeu a seguinte resposta: “Tire-me daqui, eu preciso avisar... Não está bem, não está bem!” Assustada, ela fugiu! Ao ouvir os risos quis entendê-los, mas não teve coragem, desistiu das vozes.
Decidiu olhar melhor aquele espaço, talvez conseguisse colocar um pouco de cor. Analisou tudo ao seu redor e percebeu que eram imagens vivas, como cenas de um filme, só que se misturavam e acabavam todas dentro de uma caixinha de surpresa que, por sua vez, girava vagarosamente em todas as direções, como que colocando cada parte em seu lugar. Chegou mais perto e viu imagens conhecidas, bonecas e bolas de uma infância da qual se recordava, que havia ficado pra trás há tão pouco tempo... Mas porque estavam sendo guardadas? Ela queria vivê-las! Tentou destruir a caixa... não conseguiu. O que havia de errado?!
Olhou pra baixo, não havia nada! Era só ela numa imensidão difusa. O que significava aquele lugar? Quis chorar, não conseguiu, mas percebeu que aquele som, antes tímido, aumentava e se aproximava dela. Foi aí que percebeu: estava dentro de si mesma! Acalmou-se e tudo voltou à situação inicial e então... silêncio! Ela estava pensando.
Depois de algum tempo percebeu que aquilo era real, estranho, incomum, mas real! Talvez estivesse em algum tipo de transe do qual não sabia se conseguiria retornar. Perspectiva aceita, resolveu aproveitar a oportunidade para colocar toda a desordem no lugar. Deixou o choro sangrar e os gemidos lamentarem tudo o que queriam, quando acabaram, colocou-os cuidadosamente onde pudesse, sempre que necessário, buscá-los. Percebeu que o riso diminuiu e não a intimidava mais. Foi ouvi-lo também. Ao dar-lhe atenção aquele barulho horrendo pareceu crescer e tornou-se insuportável. Era uma sensação agonizante de desespero e mentira que foram dominando cada músculo dela, aquela seria a parte mais difícil!
Afastou-se e começou a perguntar-se o porquê daquela loucura. As imagens a sua volta resolveram ajudá-la. Começou a rever milhares de situações em que calara sua tristeza e entorpecera sua dor, percebeu que em todas elas ria, incontrolável, daquilo que não tinha graça, do que não gostava, do que não via! Observou a insanidade crescendo dentro de cada sorriso falso e cada noite desperdiçada em meio ao que não a atraía. Sofreu com sua indiferença, como pode maltratar-se assim?!
Entendeu que, para acabar de vez com aquela sensação de histeria tinha que se sentir feliz de verdade, aceitar-se plenamente e à sua realidade. Resolveu voltar pra caixinha de surpresas. Olhou cada lembrança que era guardada, como aceitar que todos aqueles rostos e lugares ficariam pra sempre no passado? Como olhar pro espaço vazio chamado futuro e acreditar que ele poderia ser melhor que aquela pequena caixa à sua frente? Respirou fundo, olhou ao redor, viu que nem tudo estava sendo guardado e tentou se ater àquelas figuras que ficariam, ao menos por agora, na sua vida.
Nessa hora viu seus amigos de verdade e, como numa pasta de arquivos, reviu cada passagem com eles e ficou feliz por estarem ao seu lado em tantas alegrias e tristezas. Depois viu sua família, cada parte de um todo que se uniu desde sempre para enfrentar o que a vida trouxesse de bom e de ruim. Viu mestres com ensinamentos que jamais esqueceria e que – ela tinha certeza- a levariam aonde quisesse. Sentiu-se forte, percebeu que, afinal, não estava sozinha e que cada pedaço arrancado, era reposto com um pouco de... TEMPO!
Então esse era o segredo? Tempo. Não precisava mais das cores, a claridade já era suficiente para que enxergasse quem era. Não precisava de grandes platéias, a melhor e mais fiel já estava ao seu lado. E quanto ao amor, bem, esse vem de tantas maneiras e com tantos nomes... Por que procurar por um só? Agora que descobrira a verdadeira fórmula da felicidade não se importava com o resto que ditava regras imediatistas, ela não iria mais se entregar a qualquer sentimento “pegue-pague”. Apagou todas as decepções, os conselhos arriscados e o desespero. Guardou quem amava, o que aprendeu e, principalmente, guardou quem era.
E então ela acordou com um sorriso no rosto, não sabia porque sorria, mas sabia que era sincero. Um gosto amargo ainda estava em sua boca, mas ela não se importava com ele. Por algum motivo agora ela sabia que, embora desagradável, o amargo era real e calava certos devaneios histéricos a que havia se entregado em alguma época da qual não se lembrava mais!
Por Isadora Perdigão